segunda-feira, 10 de junho de 2013

Nevermore... Nevermore...

O dia ia findando quando deixou o carro estacionado na pracinha. Caminhou pela calçada estreita, cabisbaixa, evitando olhar o mar do outro lado da rua, tentando ser surda ao barulho das ondas batendo nas pedras. Concentrava-se no compasso do coração disparado, na respiração falha, naquele frio no estômago que ameaçava impeli-la a correr, nem havia para onde correr. Meses ensaiando, não ia recuar.

Chegou ao portãozinho do prédio, o molho de chaves nas mãos, atrapalhada. O porteiro aciona a trava elétrica, e aquele barulhinho causa um calafrio. Empurra o portão devagarinho, fitando o chão, respira fundo e caminha até o hall de entrada. Um aceno ao porteiro, não consegue pronunciar uma palavra ao velho conhecido. Estende a mão automaticamente para receber a correspondência acumulada, e segue em frente. Cada passo rumo aos elevadores pesa. Para à frente de um deles, preme o botão, as mãos tremem, um gesto antes tão casual...

Ouve os estalidos da velha engrenagem, apruma-se involuntariamente quando chega o elevador. Abrem-se as portas, e ela adentra ao cubículo, vazio, frio, e as mãos não conseguem erguer-se até o painel. Ouve uma voz feminina gritar “espera”, e entra esbaforida no elevador uma senhora desconhecida... seria moradora nova? Vê a senhora apertar o botão do 13º andar e a ouve perguntar “onde vai?”

“Quarto”, responde, e sua própria voz lhe parece estranha... sobem em silêncio. Desce no quarto andar, e caminha lentamente para a porta do 404. O corredor vazio é uma longa estrada que seu coração acha difícil de transpor. Para diante da porta, o coração aos saltos. Separa devagar a chave, coloca-a na fechadura, falta força para abrir. Respira fundo e finalmente destranca a porta, e gira a maçaneta, entreabrindo aquele depósito de memórias.

Entra devagar, fecha a porta atrás de si, recosta-se nela, e se deixa invadir pelo perfume dele, fecha os olhos e sente a presença dele se avolumando, tomando conta, tão rodeada dele que quase espera ouvir o riso cristalino, a voz matreira, sentir os braços fortes rodeando-a ante de beijar...

Mergulha no perfume que ele deixou ali, mergulha nas lembranças construídas ali, e encostada ainda à porta, com os olhos fechados, ouvindo o som abafado do mar batendo nas pedras, sente-se transbordar, e as lágrimas correm, silenciosas... como um espaço tão pequeno pode conter tantas lembranças? Como é que o perfume dele ficou aqui, tão forte tanto tempo depois, criando a ilusão de que ele acaba de sair do banho espalhando o cheiro em cada cantinho?

Devagarinho reabre os olhos, como se a confirmar que ele não está realmente ali. Caminha devagar pelo corredorzinho, de soslaio olha a cozinha minúscula, as duas canecas no escorredor, o pano de prato amarfanhado sobre a pia, lembranças do último café apressado antes de saírem correndo atrasados para seus próprios destinos.

Mais alguns passos, e o coração parece se rasgar, tamanha a dor... sobre a cama mal feita, as roupas usadas na última noite; sobre a mesa, a última revista meio lida, algumas moedas com a notinha da padaria, o controle remoto colocado em território neutro depois de desligar a tv, incapazes de concordar sobre algo a assistir... deixa ali a bolsa e as chaves, e a correspondência que nem consegue olhar...

A luz do dia finda, e a cortina da imensa janela não é capaz de filtrar as luzes da cidade. Anda até a janela, afasta o cortinado, fitando o mar cor de chumbo que continua castigando as pedras, do outro lado da rua. Hesita em abrir o vidro, teme deixar que o cheiro dele se vá com a brisa marinha, insiste na janela fechada como se a aprisionar qualquer resquício dele que ainda esteja ali, tentando manter um último hálito que o respirar dele tenha deixado para trás...

A noite se faz completa, o céu coberto de nuvens, que ela nem viu chegarem. Em algum momento percebe o frio, e caminha sem pensar até o armário, em busca de um agasalho, abre a porta como gesto corriqueiro, e é novamente tomada pela dor quando outra vez o cheiro dele se faz mais forte, emanando das roupas que ficaram esperando ele retornar... presos no espelho de dentro da porta, os pequenos bilhetes de um para o outro, duas fotos, instantâneos de felicidade que jamais se repetirão...

Toma nas mãos um casaco dele, traz ao rosto, soluça convulsivamente num choro que chora todas as dores do mundo, todas as perdas do mundo, toda a desolação do mundo... chora a solidão, chora a ausência eterna, chora a saudade de cada instante compartilhado, chora o vazio que ele deixou...

Finalmente compreende que acabou. Não chegará nas sextas, antes dele, e ficará esperando ansiosa o barulho da chave dele na fechadura. Não o receberá descalça, com cabelo molhado, vestindo uma camisa dele, correndo ao seu encontro, se jogando nos seus braços fazendo-o derrubar o que tiver nas mãos... não haverá mais caminhadas pela pracinha ali perto, comprando coisinhas fúteis na feirinha de artesanato e escolhendo dezenas de doces para o fim de semana à toa...

Não haverá rusgas na disputa da primazia para tomar banho, nem ouvirá a voz dele pedindo a toalha que sempre esquecia de levar para o banho... não disputarão no jankenpon quem busca leite, frios e pão, na padaria do outro lado da praça. Não haverá mais briguinhas porque ela gostava de sentar no parapeito da janela olhando o mar, e ele tinha pavor que ela despencasse...

Não caminharão à beira mar ao entardecer, de mãos dadas, alheios aos banhistas, às crianças brincando, aos pescadores e suas tralhas, absortos demais em si mesmos para tomar conhecimento de algo à sua volta... não estenderão as caminhadas nas noites mornas até a ponte, que ela não conseguia atravessar, presa naquele medo irracional de que algum pedaço de ferro cedesse e ambos caíssem no mar profundo, não importando quantos argumentos perfeitamente lógicos ele declinasse em favor da antiga ponte ainda em uso...

Não descobririam juntos os recantos mais bonitos, não escolheriam as frutas mais saborosas, não experimentariam os restaurantes diferentes, nem ririam baixinho das pessoas definitivamente esquisitas com quem cruzavam pelas ruas... Não se sentariam mais nas pedras do outro lado da rua, nas noites de mar calmo refletindo a lua cheia, as mãos entrelaçadas, a cabeça dela recostada no ombro dele, compartilhando a paz e a serenidade de amar.

Agarrada ao casaco dele, senta na beirada da cama, o pranto correndo solto... Não se deitariam mais lado a lado, simplesmente olhando nos olhos, lendo a alma um do outro, compartilhando a tranquilidade do depois. Não dormiriam abraçados, não acordariam amarfanhados, não haveria mais o amor das manhãs, nem o riso, nem os lábios dele junto aos dela, nem as mãos ansiosas percorrendo caminhos decorados... não haveria mais a melancolia do domingo à noite, a pressa nas manhãs de segunda em que tinham que correr para não perder o horário de seus transportes, levando-os de novo para mais uma semana de distância, trabalho e espera...

Veste o casaco, como tentando se cobrir da presença dele, se impregnar com o que dele restou ali. Abraça o travesseiro dele, mergulha o rosto ali, abafa o grito de dor incontida, os soluços do choro incessante, tentando deixar de ser, deixar de existir, se fundir, se transformar no nada que ele deixou... Adormece de pura exaustão...

Acorda atordoada no meio da madrugada, os trovões anunciando os raios que caem incessantemente. Caminha de novo até a janela, fitando a chuva torrencial, o mar furioso castigando as pedras, como se a natureza inteira se revoltasse, refletindo a dor que a corroía por dentro...um raio cai mais perto, ali no farolzinho da curva da praia, e ela sente tremer, e já nem sabe se quem treme é a terra, ou ela mesma, ou a casca vazia que sobrou de si depois que ele partiu...

There's no living in my life anymore
The seas have gone dry and the rain stopped falling

Abre a janela, deixa o vento e a chuva entrarem, sabe que não é possível continuar sem ele. Devagarinho, sobe no parapeito da janela, e desta vez, parece ouvi-lo do mar, gritando por ela, abre os braços, salta e voa para junto dele, feliz...



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